October 31, 2007

A ilusão da mentira

Numa tarde cinzenta ele, já não conseguia segurar as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto derretendo o brilho do olhar, juntamente com o passado simplesmente apagado por nunca ter existido. Sentado num banco de jardim em Lisboa, observava a vida que à sua volta surgia, impotente para controlar um tempo cada vez mais remoto... ali permanecia.
A culpa, carregava-lhe os ombros de tal forma que subitamente tinha perdido a vontade de viver, a vergonha por matar os sorrisos que semeou, como o sol que na tela pintada tanto revela o brilho das cores como retira-as deixando um branco pesado em tons de negro como o segredo agora revelado, demasiado doloroso para ser ouvido mas que ecoa na sua mente, repetindo vezes sem conta as palavras que tanto se recusa a ouvir. Aquele foi o caminho que escolheu, desvendado pelo tempo do qual sempre se escondeu e agora num abraço sem dó recolheu a pouca verdade que existia transformando tudo num tormento de mentiras.
A dor insuportável, como a insustentável dureza de um ser que sentia a dor de ferir quem amava, cambaleava pelas ruas de Lisboa sem destino, como a sua vida, um hoje sem pensar no amanhã. A todos os segundos relembrava o rosto de quem ficava para trás na dor criada por os seus actos, sempre soube que ia acontecer mas nunca soube, quando? Ou como? Uma vida duplamente vivida nunca duraria para sempre, pensava ele numa das muitas noites em branco fruto da ilusão que para outros arquitectava. Tentou inúmeras vezes entregar-se à verdade mas sempre que decidia firmemente, a ilusão era tanta que não sabia separar e quase sempre ficava... calado, à espera que pelo tempo tudo fosse revelado.” O dinheiro, sempre, foi a causa de tudo” pensava, sem conseguir ver o verdadeiro culpado(ele). Durante as noites de insónia tentava encontrar soluções que adiavam e nada resolviam. Aos poucos e poucos ia criando uma bola de neve que resultou na avalanche que abateu sobre eles.
Imaginava, Maria sua esposa e Pedro seu filho, numa casa vazia encharcados em lágrimas de raiva, desejou que nunca tivesse acontecido e o ódio apoderou-se, matava-o aos poucos. Hoje nada tinha se não a consciência pesada de uma vida mal levada, se pudesse voltava atrás e diria por breves momentos o quanto ama aqueles que agora faz sofrer, demonstrando arrependimento em forma de uma paz desejada. Hoje apenas ficam as palavras de quem vive na rua num rio de entulho que a cidade rejeita, sobrevive com a ajuda de outros e em buscas na degradação humana, dorme com o seu corpo suportado por um pedaço de cartão que não aquece a rua fria de uma memória jamais esquecida. Adormecia, nos braços da mulher que amava (imaginava) coberto na tal noite fria aquecida pelos dois corpos deitados, Naqueles momentos dava valor ao que nunca deu, esqueceu as noites perdidas em copos e no jogo... esqueceu até mesmo o ódio que sentia, trocava tudo para ter de novo a sua família, adormeceu naquela noite como tantas outras que já tinham passado na rua.

Acordou, com uma criança aos saltos e uma mulher deitada ao seu lado, ouvia de fundo “pai”, e um leve beijo no seu rosto, tentou entender o que se passava mas nada fazia sentido. Maria estava deitada ao seu lado e Pedro aos saltos ambos bastante mais novos, olhou-se ao espelho que havia em frente da cama, também seus contornos mais novos e sem o mau aspecto da última noite, só recordava o deitar-se numa caixa de cartão estendida na calçada nada mais, e agora ali estava na sua casa que tanto desejou, sentiu-se fruto de uma ilusão que tanto ele criou, segurou na primeira peça de roupa vestiu e rapidamente fugiu de casa perante o olhar incrédulo da sua família. Correu sem rumo sem meta, passado uns bons minutos de correria parou e recuperou a respiração perdida na corrida. Olhou para uma banca de jornais, mas já tinha lido aquelas notícias e conseguia desenrolar os próximos capítulos, o ano 1987... pensou estar louco. “não pode ainda ontem estava em 2002” dizia para ele mesmo, pôs as mãos ao bolso e num dos bolsos restos de um entulho que ontem recuperou do lixo e um pedaço de jornal que em pequenas letras dizia “ todos têm direito a uma segunda chance”, naquele momento transformou-se num homem diferente e foi para casa abraçar aqueles que nunca chegou a abandonar. Em segredo todas as noites agradece pela chance de uma vida antiga completamente nova.

Uma ilusão numa outra ilusão, encontrada numa oração desesperada.

André Henry Gris

2 comments:

Ana Isabel said...

Todos nós, num certo momento da nossa vida, gostariamos de voltar atrás, fazer tudo diferente ou talvez tudo igual, só para viver outra vez. Mudar um gesto que fizemos, uma decisão que tomámos, um olhar que não lançámos ou uma palavra que não dissemos. Talvez nos parecesse dispensável fazer tudo isso e quando nos apercebemos, agora, que podiamos ter feito de outra forma, ter vivido de outro modo, desejamos poder voltar atrás e mudar. Neste texto, o homem voltou atrás, ou talvez nunca tenha saído daquela casa, talvez nunca tenha passado naquela rua aquelas noitas frias, talvez, e tudo isto numa interepretação mais pessoal, toda aquela frieza passada na rua foi só o seu inconsciente, lembrando e pensando em quem amava.

Por vezes, penso viver num inconsciente. Depois, acordo, e tudo está aqui outra vez. Tudo igual. Tudo como deixei.

Maria Eugénia Ponte said...

Vim visitar-te aqui, no teu cantinho e gostei do que li...
Beijinho grande e continua a escrever com essa sensibilidade linda!